Conceito de Deleuze para a esquerda e para o que significa ser de esquerda.
CP: Entre seu civismo de homem de esquerda e seu
devir-revolucionário, como você faz? O que é ser de esquerda para você?
GD: Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de esquerda. Não se espantem com isso.
O governo francês, que deveria ser de esquerda, não é um governo de esquerda. Não é que
não existam diferenças nos governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas
exigências da esquerda. Mas não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada
a ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda ou definir a
esquerda, eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de
percepção é a seguinte: o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um
endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a
cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e,
na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em
como fazer para que esta situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar e
que é muita loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam: “Os chineses
estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais?” E ser de esquerda é o
contrário. É perceber... Dizem que os japoneses percebem assim. Não vêem como nós.
Percebem de outra forma. Primeiro, eles percebem o contorno. Começam pelo mundo,
depois, o continente... europeu, por exemplo... depois a França, até chegarmos à Rue de
Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro, percebe-se o horizonte.
CP: Mas os japoneses não são um povo de esquerda...
GD: Mas isso não importa. Estão à esquerda em seu endereço postal. Estão à esquerda.
Primeiro, vê-se o horizonte e sabe-se que não pode durar, não é possível que milhares de
pessoas morram de fome. Isso não pode mais durar. Não é possível esta injustiça absoluta.
Não em nome da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de esquerda é começar
pela ponta. Começar pela ponta e considerar que estes problemas devem ser resolvidos.
Não é simplesmente achar que a natalidade deve ser reduzida, pois é uma maneira de
preservar os privilégios europeus. Deve-se encontrar os arranjos, os agenciamentos
mundiais que farão com que o Terceiro Mundo... Ser de esquerda é saber que os problemas
do Terceiro Mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. É de fato uma
questão de percepção. Não tem nada a ver com a boa alma. Para mim, ser de esquerda é
isso. E, segundo, ser de esquerda é ser, ou melhor, é devir-minoria, pois é sempre uma
questão de devir. Não parar de devir-minoritário. A esquerda nunca é maioria enquanto
esquerda por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe – até quando se vota,
não se trata apenas da maior quantidade que vota em favor de determinada coisa – a
existência de um padrão. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto,
macho, cidadão. Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá
obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar este padrão. Ou seja, a
imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é
ninguém. É um padrão vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem neste padrão vazio.
Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho, etc. As mulheres vão contar e intervir nesta
maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a este padrão. Mas,
ao lado disso, o que há? Há todos os devires que são minoria. As mulheres não adquiriram
o ser mulher por natureza. Elas têm um devir-mulher. Se elas têm um devir mulher, os
homens também o têm. Falamos do devir-animal. As crianças também têm um devircriança.
Não são crianças por natureza. Todos os devires são minoritários.
CP: Só os homens não têm devir homem.
GD: Não, pois é um padrão majoritário. É vazio. O homem macho, adulto não tem devir.
Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda é o conjunto dos processos de devir
minoritário. Eu afirmo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é
isso: saber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É por
isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que
chamamos de eleições. Mas são coisas bem conhecidas.
*postagem atualizada em 13 03 2019